sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Memorial

Pobre velha música!
Não sei por que agrado,
Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.

Recordo outro ouvir-te,
Não sei se te ouvi
Nessa minha infãncia
que me lembra em ti.

Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz?Não sei;
Fui-o outrora agora.

Fernando Pessoa




Tv preto e branco, teto alto, madeira corrida no chão da sala. No fim do corredor da casa antiga, com poucos móveis, havia um rádio muito velho. Para alcançá-lo eu precisava de uma cadeira. Meu violão era um pedaço de pau já engastado pelo tempo.
Nos intervalos entre as brincadeiras de rua e o “capitão asa”, ouvia minha mãe cantar os hinos da igreja, meu pai , sempre metalúrgico, quando chegava logo se denunciava pelo som do saco de bala que trazia para mim e meu irmão. Em casa não havia livros, o que me alimentava eram os sons. Vez ou outra passava lá na rua o moço que trocava garrafa por pintinho e era um estardalhaço, quase distorcido no auto falante. O mundo deixou de ser preto e branco quando passei a ver o Juarez Machado no show da vida todo o domingo. Seu não-som me dizia muito mais, acompanhado de sua telas que pareciam sonhos. Na verdade seus quadros eram a extensão das brincadeiras que eu inventava quando olhava da janela e imaginava um mundo nas nuvens. Junto com as imagens de sonhos vieram as letras e elas me tomaram de tal jeito que virava a noite a fazer cópias e mais cópias das lições que trazia para casa.
Meu rádio velhinho, a negra bicicleta do quintal, o som de saco de bala foram embora junto com meu pai e a trilha sonora que se ouvia ao fundo misturava os hinos divinos cantados por minha mãe e as melodias dos chorinhos, das orquestras de auditório e da atonalidade que morava na casa de meu tio. A dor de dente cuidava-se com “Jimi Hendrix” a garganta inflamada com “ A barca do sol”. Na escola tudo era muito normal, eu ficava depois da hora porque tinha feito arruaça. Mas para casa do meu tio eu voltava todo final de semana. Já na entrada, pois a casa ficava ao fundo de um longo corredor, ouvia-se o clamor de “Robert Plant” dizendo que o “som continuava o mesmo” ou “das escadas que levavam para o céu” , não havia certo ou errado , feio ou bonito o que havia era som. Blues, rock progressivo, chorinho; Ah! e durante algum tempo ainda pude apreender a ouvir o samba da melhor qualidade introduzido pelo meu padrasto. Os gêneros se entre-laçavam formando a minha alma. Meu tio não falava, ele apenas fechava os olhas diante da vitrola phillips. A música era o texto sobre o qual eu paltava meu dia-a-dia. O que mais me chamava atenção na hora do recreio era aquele som de milhares de vozes cruzadas, no pátio da escola que contrastava com o conhecido “cobrir/sentido” que eramos obrigados a fazer, a final os anos eram 70.
Como a experiência sonora sempre fez parte importante da minha vida, ao mudarmos a paisagem também transformou-se. De latidos de cachorros e poucos carros que passavam na rua onde moravamos, fui morar no meio do centro. Sim porque a Presidente Vargas foi o palco de acontecimentos importantes. A paisagem sonora que ali se mostrava era absurdamente agrassiva, fora o sino da igreja de S’Antana. Tinha os aviões e helicópteros, os da marinha faziam um som ensurdecedor quando pousavam atrás do Souza Aguiar. Uma coisa compensou, o centro cultural que abrigava a escola municipal onde estudei. Era uma maravilha, e foi lá que travei os primeiros contatos com o instrumento que hoje toco: a flauta.
Toda aquela experiância de criança encontrava campo fértil no “Calouste Gulbenkian” foi no palco do teatro Gonzaguinha , aos 10 anos, que fiz minha primeira apresentação . Insentivados pela professora, eu e alguns colegas do curso de flauta doce acompanhamos um músico que ali se apresentava. Tocamos percussão. Ali também foi onde me alfabetizei musicalmente. Fiquei ali o tempo necessário para a semente da música crescer em mim.

4 comentários:

  1. Bacana o texto memorialístico, Celso. O retrato do artista quando jovem.

    Um abraço.

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  2. Mais uma vez venho aqui expressar minha imensa admiração pela poesia que habita suas memórias.
    Quanta coisa Celso, que mundo só seu...
    Beijo!

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  3. Oi Celso.
    Obrigado pela gentileza de me adicionar como amigo - devidamente retribuída na Toca.
    Um abraço e uma boa semana.

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  4. Meu caro, obrigado por mais uma visita em meu blog! Seria um grande prazer tê-lo conosco no dia do lançamento do Dicionário de Poética e Pensamento! Ah, quanto ao seu texto, foi bom lembrar da época quando eu também trocava garrafas por pintinhos...
    Um abraço!

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